Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.Sê plural como o universo! Fernando Pessoa.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

 Perdeu a noção do tempo que estava ali. Nem queria saber.
 Hoje era o dia oficial sem relógio, o único compromisso marcado na agenda era consigo mesma. Escolher qual caneca da coleção tomaria seu café preto.
 Entre as colheradas de café e açúcar lebrava da sua infância , de servir café para o seu avô e no intervalo de cada gole divagava sobre como era importante para uma mulher saber fazer um bom café e definiu pelo sabor do café que ela já poderia se casar, no auge dos seus quatorze anos. Ela sorria e agradecia, mal sabia naquela idade que precisaria muito mais que um bom café para ter um bom relacionamento.  O seu avô também sabia mas esse não é o tipo de coisa que se diz a uma menina, uma coisa de cada vez, primeiro o café.
Sentou na mesa literalmente, com os pés na cadeira, lembrou-se da mãe que sempre raiava quando se sentava assim, agora já não tinha problema, morava sozinha, mas quase desistiu daquela posição só de lembrar os gritos da mãe quando a encontrava fazendo isso,sorriu,serviu-se na sua caneca preferida e segurou-a com as duas mãos na tentativa inútil de aquecer-se,enquanto bebia olhava pela janela o céu, ele estava com uma cor amarelada, pois chovia e fazia sol ao mesmo tempo.. era o casamento da raposa.  Nem lembrava quem lhe havia dito isso na infância mas sempre que isso acontecia era a primeira coisa que lhe vinha a mente. Certas coisas nunca saem da mente não importa mesmo quanto tempo passe,deveria ter alguma utilidade, alimentar a imaginação faz bem, todas as vezes de chuva e sol saia pelo jardim procurando raposas se casando, nem sabia como era uma raposa, mas sabia como era um casamento, seria fácil, mas nunca viu.
 O sol se pôs e a chuva adentrou a noite, o vento estava forte suas cortinas balançavam, entrava água no apartamento, algumas gotas chegavam até seu rosto. O café acabou. O frio aumentou. O céu escureceu, ela particularmente achava o céu mais bonito a noite, gostava do azul da beleza das nuvens brancas, mas gostava muito mais do mistério do céu negro e imaginar tudo que nele estava contido, as nuvens que ainda estavam lá só que agora invisíveis, as estrelas que formavam desenhos interessantes. Não sabia nada de astronomia, mas estava na sua lista de coisas para aprender antes de morrer. Como tantas outras coisas: Falar francês, dar a volta ao mundo, ter sucesso na carreira, tocar piano, violão. E quando era criança estava na lista de metas ler o dicionario inteiro, porque queria saber todas as palavras e como utiliza-las, riscou da lista quando chegou a letra O, achou suficiente, estava cansada de tantas palavras parou na maior palavra que tinha visto e na que achou mais difícil, otorrinolaringologista, demorou dias para aprender a falar corretamente e bem rápido e então quando a brincadeira era trava-línguas , e todos vinham com o tal " trés tigres comiam trigo..." ela dizia otorrinolaringologista e as crianças perdiam, ninguém conseguia falar e ela achava incrível, ensinou seu irmão também, ele deveria saber como falar a maior palavra de todas e o que ela significava.  Fechou a janela, o tapete estava úmido as cortinas também.
 Da sala escutou o celular tocar e pela musica, era ele. No mundo de hoje quando alguém é importante tem um toque no celular só para ele, ela escolheu a sua musica preferida porque ele também era o preferido. Mas por hoje odiava a musica tanto quanto ele. Não iria atender.
Seu estomago falou algo parecido com  estou com fome, lembrou que não havia comido nada o dia inteiro, mas o desejo de comer não estava nela, sempre comeu muito mais pelo  desejo que pela necessidade física de alimentar-se, para justificar isso estavam as calças apertadas do guarda-roupas.  A musica de novo e a dor de estomago, dessa vez de ansiedade, não atender, não atender, não atender....
 Caminhou pela sala em direção aos CD´s, procurou uma musica suave colocou para tocar. Mas aquilo não seria o suficiente para acalma-la, foi em direção ao quarto e na gaveta encontrou a carteira de cigarros abandonada junto ao esqueiro e deparou-se com o anel, que não queria ver, lembrou que aquela era a gaveta das coisas que queria abandonar, lembrou que disse que não ia abri-la por um bom tempo. Só hoje, era uma emergência  O anel brilhou no fundo da gaveta ela o pegou e levou-o até a sala, enquanto acendia o cigarro, olhava o anel e para a marca branca que ele havia deixado em sua mão direita. Assim era tão mais difícil  esquecer. Um turbilhão de lembranças vieram a sua mente num instante e a certeza de outrora fora imediatamente substituída pela duvida. Pensou em tantas outras coisas  antes para não voltar aquilo de novo.
Era ultimo cigarro desde os quatro anteriores. Porque era o ultimo dia ...

Nenhum comentário:

Postar um comentário